O direito fundamental à saúde e a nova posição do STJ sobre o fornecimento de medicamentos não contemplados na lista do SUS
Por Marcos Vinicios Gonçalves (OAB/SC 50239), advogado membro do SLPG.
A consagração constitucional do direito fundamental à saúde, juntamente com a positivação de outros direitos fundamentais sociais, seguramente pode ser apontada como um dos principais avanços da Constituição Federal de 1988[1].
As diretrizes e os contornos próprios do direito fundamental à saúde, correlacionado, mas jamais submisso à garantia da assistência social, foi um fator de destaque no sistema constitucional de 1988[2], pois rompeu com a legislação tradicional anterior que, em linhas gerais, apenas tratava da saúde de modo indireto, muitas vezes no âmbito das normas de competência[3].
Verifica-se que o constituinte de 1988 não buscou apenas prever a existência de um direito fundamental à saúde (art. 6º), mas preocupou-se também em especificar seu conteúdo e forma de proteção (art. 196). Essa concepção larga do direito à saúde foi muito influenciada pelas normas de Direito Internacional Público[4], ocasionando, assim, uma constante comunicação entre o sistema constitucional brasileiro e os dispositivos protetivos internacionais.
Merece destaque o fato de que o direito fundamental à saúde exerce uma interconexão, individual e coletivamente, com a proteção de outros direitos fundamentais. Significa dizer que a defesa do direito à saúde também ocorre pela proteção conferida a outros bens fundamentais, com os quais apresenta áreas de afluência e mesmo de superposição[5].
Salvaguardar o direito fundamental à saúde é garantir proteção ao catálogo[6] de direitos fundamentais consagrados pelo texto constitucional, tais como o direito à vida, a dignidade da pessoa humana, o meio ambiente, o trabalho, a seguridade social etc.
Tal linha de argumentação é reforçada pela noção de intersetorialidade[7] que envolve o mencionado direito fundamental, haja vista o fato de que a efetivação do direito à saúde não incumbe somente ao setor de saúde, pelo contrário, por ser um garantidor das condições mínimas de vida, depende do esforço/promoção - configuradas na consecução de políticas públicas - por parte de outras esferas de poder[8].
Nessa perspectiva, mesmo que não tivesse sido positivado explicitamente no texto constitucional, o direito fundamental à saúde certamente seria aceito como um direito fundamental implícito, tendo em vista a cláusula de abertura contida no parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal, que permite a extensão do regime de jusfundamentalidade[9].
Certo é que, uma ordem constitucional que protege o direito à vida, que assegura o direito à integridade física e corporal e que tem por fundamento constitucional a dignidade da pessoa humana, evidentemente deve salvaguardar a saúde, sob pena de esvaziamento (substancial) dos mencionados direitos[10].
Para além da condição de direito fundamental, à proteção da saúde efetiva-se também como dever fundamental de proteção, eis que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” conforme determina o art. 196 da Constituição Federal.
É importante ressaltar que, por seguir o princípio da universalidade, o destino e a titularidade do direito fundamental à saúde segue a linha do que dispõe o caput do art. 5º da Constituição Federal, isto é, o direito à saúde e o direito ao próprio Sistema Único de Saúde – SUS são tidos como direito de todos[11].
Percebe-se que a Constituição Federal de 1988 alinhada com a evolução constitucional contemporânea, não só previu a saúde como bem jurídico digno de proteção constitucional, mas foi mais além, consagrando a saúde como direito fundamental, outorgando-lhe, de tal sorte, uma proteção jurídica diferenciada no âmbito da ordem jurídico-constitucional[12].
À vista disso, não se pode dizer que o referido direito consubstancia-se tão somente em uma norma programática, que apenas determina diretrizes a serem seguidas pelo Poder Público. Em verdade é de se destacar que o direito à saúde traduz-se como um direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional[13].
Sobre este ponto, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do AgR-RE nº 271.286-8/RS, pontuou que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente” sendo que “a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde”.
Nesse plano jurídico é fácil concluir que os problemas de eficácia do direito à saúde devem-se muito mais a questões ligadas à implementação de políticas públicas já existentes, do que falta de legislação específica.
Se tomarmos os dados do Orçamento Geral da União de 2017[14], através do qual o Congresso define para onde serão destinados os impostos arrecadados por todos os brasileiros, fica constatado que a “Saúde” (4,14%) é uma prioridade muito menor que os “Juros e amortizações da dívida pública” (39,70%). Dominado pela lógica neoliberal, o Estado se apequena e aplica uma dura austeridade contra a garantia do direito à saúde e outros direitos fundamentais[15], ao passo em que se agiganta e aplica a mais generosa política orçamentária para banqueiros e rentistas, que recebem quase metade de tudo que se arrecada de impostos no Brasil para a “rolagem” de uma dívida pública nunca auditada, como ordena a Constituição[16].
É neste contexto que a via judicial (ou a Judicialização) vem se tornando cada vez mais importante para se garantir o direito à saúde. Materializada principalmente pelas decisões judiciais que determinam a realização de procedimentos, diagnósticos terapêuticos, consultas, internações e dispensação de insumo médico-cirúrgicos, a Judicialização fica caracterizada na reivindicação da saúde como um direito, onde o Poder Judiciário passa a ter função de destaque, tendo em vista o fato de que emite decisões coercitivas que determinam ao Estado Executivo o imediato cumprimento da ordem[17].
É nesse panorama que a primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu, no último dia 25 de abril, o julgamento do recurso repetitivo (REsp nº 1.657.156 – RJ), de relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, que determina quais são os requisitos para que o Poder Judiciário determine o fornecimento de medicamentos fora da lista do Sistema Único de Saúde (SUS)[18].
A tese fixada uniformizou o entendimento de que constitui obrigação do poder público o fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do Sistema Único de Saúde (SUS), desde que reunidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
- A comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
- Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e
- Existência de registro do medicamento no cadastro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Insta consignar que houve modulação dos efeitos da decisão, no sentido de considerar que “os critérios e os requisitos estipulados somente serão exigidos para os processos que forem distribuídos a partir da conclusão do julgamento”, nos termos do que dispõe o art. 927, parágrafo 3º do Código de Processo Civil.
Assim, portanto, vale frisar que a aludida decisão reconhece que constitui obrigação do poder público o fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do Sistema Único de Saúde (SUS), o que demonstra o reconhecimento de um verdadeiro direito fundamental social. No entanto, determina que o requerente demonstre hipossuficiência, sem que haja previsão constitucional para tanto, demonstrando, no ponto, certa inconstitucionalidade do posicionamento.
Vale tecer, também, que os magistrados do Brasil estão obrigados, em tese, a cumprir a decisão do Superior Tribunal de Justiça, por força do disposto no art. 1.040 do Código de Processo Civil.
Como se observa, o novo posicionamento do Superior Tribunal de Justiça traz uma nova perspectiva, tanto para o Direito Fundamental à Saúde como para a Judicialização da Saúde no que tange fornecimento de medicamentos.
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Notas de rodapé:
- Cf. CARVALHO, M. S. de. A saúde como direito social fundamental na Constituição Federal de 1988. Revista de Direito Sanitário, v. 4, n. 2, p. 22, jul. 2003.
- Cf. RAEFFRAY, A. P. O. de. Direito da Saúde de acordo com a Constituição Federal. São Paulo: Quartier Latin, 2005.
- Cf. Definição de competências entre os entes da Federação (Constituição de 1934, art. 5º, IXI, “c”); Garantia de socorros públicos (Constituição de 1824, art. 179, XXXI); Garantia de inviolabilidade do direito à subsistência (Constituição de 1934, art. 113, caput).
- No que tange ao direito à saúde, destacamos alguns dispositivos protetivos, entre eles: Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (DUDH/ONU) de 1948, arts. 22 e 25, direitos à segurança social e a um padrão de vida capaz de assegurar a saúde e o bem-estar da pessoa. Convenção Americana de Direitos Humanos, denominado “Pacto São José da Costa Rica”, arts. 4º e 5º, direito à vida e à integridade física e pessoal.
- Cf. LOUREIRO, J. C. Direito à (protecção da) saúde. In: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano. Coimbra: Coimbra Editora (Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), 2006, p. 660 e ss.
- Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. O direito ao mínimo existencial não é uma mera garantia de sobrevivência. 2015. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2015-mai-08/direitos-fundamentais-assim-chamado-direito-minimo-existencial > Acesso em: 27/04/2018.
- VANDERPLAAT, Madine. Direitos Humanos: uma perspectiva para a saúde pública. In: Saúde e Direitos Humanos. Ano 1, n. 1. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz, Núcleo de Estudos em Direitos Humanos e Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004, p. 29. Disponível em: < http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/publicacoes/saude-e-direitos-humanos/pdf/sdh_2004.pdf > Acesso em: 27/04/2018.
- BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. O Desenvolvimento do Sistema Único de Saúde: avanços, desafios e reafirmação de seus princípios e diretrizes. 2 ed. atual. Brasília: Ministério da Saúde, 2004, p. 24. Disponível em: < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/desenvolvimento_sus_avancos_diretrizes_2ed.pdf > Acesso em 27/04/2018.
- Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. O direito ao mínimo existencial não é uma mera garantia de sobrevivência. 2015. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2015-mai-08/direitos-fundamentais-assim-chamado-direito-minimo-existencial > Acesso em: 27/04/2018.
- Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988. 2007, p. 3. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/rere-11-setembro-2007-ingo_sarlet_1.pdf > Acesso em: 27/04/2018.
- Cf. FIGUEIREDO, M. F. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007; Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 9ª ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado.
- Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988. 2007, p. 2. Disponível em: < http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/rere-11-setembro-2007-ingo_sarlet_1.pdf > Acesso em: 27/04/2018.
- BRASIL, Supremo Tribunal Federal. AgR-RE nº 271.286-8, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 12/09/2000.
- Ver gráfico produzido pela Auditoria Cidadã da Dívida. Disponível em: < https://auditoriacidada.org.br/wp-content/themes/auditoriacidada/assets/files/orcamento-2017.docx > Acesso em: 08/05/2018.
- “Saneamento” (0,03%), “Direito a cidadania” (0,06%), “Habitação” (0,00%), “Cultura” (0,04%), “Segurança pública” (0,37%), entre outros.
- ALMEIDA CUNHA, Jarbas Ricardo. A Auditoria Constitucional da Dívida e o Financiamento do Direito à saúde no Brasil nos 25 anos da Constituição Brasileira. 2013. Disponível em: < https://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2013/04/Artigo-Auditoria-Sa%c3%bade.pdf > Acesso em: 08/05/2018.
- RAMOS, Raquel de Souza. GOMES, Antônio Marcos Tosoli. GUIMARÃES, Raphael Mendonça. SANTOS, Érick Igor dos. A Judicialização da Saúde Contextualizada na Dimensão Prática das Representações Sociais dos Profissionais de Saúde. 2017. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v18i2p18-38 > Acesso em: 27/04/2018.
- BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Seção define requisitos para fornecimento de remédios fora da lista do SUS. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Primeira-Se%C3%A7%C3%A3o-define-requisitos-para-fornecimento-de-rem%C3%A9dios-fora-da-lista-do-SUS > Acesso em: 27/04/2018.