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A Reforma da Previdência e seus reflexos sobre os trabalhadores da saúde

Por Luis Fernando Silva - OAB/SC 9582 - Advogado/Socio do SLPG

Conforme temos acompanhado todos os dias pela mídia, o Governo Federal tenta a todo custo aprovar, ainda este ano ou nos primeiros meses do próximo, sua proposta de Reforma da Previdência, na versão denominada de “Emenda aglutinativa global”, que entra-se na Câmara dos Deputados.

Para tanto vem fazendo uso de uma forte campanha publicitária através da qual objetiva colocar os servidores públicos na condição de “privilegiados”, ao tempo em que afirma que as mudanças em debate não afetarão os trabalhadores do setor privado.

O presente artigo visa, assim, demonstrar que ambas as afirmações governamentais são mentirosas, sendo utilizadas apenas para tentar ludibriar a opinião pública e desmobilizar os setores sociais que impediram, até aqui, que a reforma seguisse em frente, bem assim esclarecer em que medida as modificações constitucionais propostas pelo Governo afetam a aposentadoria dos trabalhadores da saúde, sejam eles dos setores público ou privado, e quem será alcançado por estas modificações, caso elas venham a ser aprovadas.

Ao fazê-lo, contudo, não podemos deixar de afirmar que a Previdência Social constitui, no caso brasileiro, a principal feramente de distribuição de renda adotada pelo Estado, de modo que a redução da proteção social que dela resulta implicará, já em curto espaço de tempo, na deterioração substancial do nosso absurdo quadro de concentração de renda, que segundo estudo recentemente publicado na “Pesquisa Desigualdade Social 2018”, coordenada pelo economista francês Thomas Piketty, importa na constatação de que em 2015 os 1% (um por cento) mais ricos do País detinham 27,8% (vinte e sete vírgula oito por cento) da renda nacional, superando até mesmo os milionários Sheiks do Oriente Médio, que concentram 26,3% (vinte e seis vírgula três por cento) da renda da região.

Demais disso, é de ver que em mais de 80% (oitenta por cento) dos municípios brasileiros a maior fonte de receita vem das aposentadorias e pensões recebidas por cidadãos ali residentes, o que implica dizer que a redução dos benefícios previdenciários importará em imediato abalo nas economias destes municípios, com consequências nocivas à população.

Tudo o que se diz em relação à proteção previdenciária, portanto, deve ser visto sob a ótica das políticas de redistribuição de renda e de combate às desigualdades sociais e econômicas regionais, e não apenas sob a lógica do equilíbrio fiscal ou, pior ainda, a partir do interesse dos grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, que veem na Previdência um obstáculo ao seu interesse de locupletamento às custas do Estado, de resto uma realidade que vem desde o Brasil Império.

O direito adquirido

Antes de prosseguir, é importante fazer uma pausa para dizer que nas questões relativas às aposentadorias a ideia de direito adquirido está diretamente relacionada à data em que o trabalhador, público ou privado, completou as condições para a aposentação nas regras vigentes.

Em outras palavras, para saber se um determinado trabalhador tem ou não direito adquirido à aposentadoria segundo as regras constitucionais vigentes (antes de aprovada a reforma, portanto), basta verificar se ele já implementou as condições para a aposentação, independentemente de haver requerido o exercício deste direito junto ao órgão competente ou deste lhe haver deferido a passagem à aposentadoria.

Se estas condições já estavam preenchidas antes da eventual aprovação da reforma, portanto, este trabalhador não será alcançado pelas modificações constitucionais em pauta, podendo aposentar-se, a qualquer tempo, segundo as regras vigentes à data do preenchimento destas condições, o que vale também para a forma futura de revisão destas aposentadorias, seja no caso daquelas a cargo do RGPS - Regime Geral de Previdência Social, administrado pelo INSS (trabalhadores celetistas e outras formas de atividade do setor privado), ou dos regimes próprios dos servidores públicos (trabalhadores do setor público, regidos por normas estatutárias).

Esta garantia resulta não só da farta jurisprudência a respeito do assunto, aí incluída a Sumula nº 359, do Supremo Tribunal Federal, como do próprio art. 6º da “Emenda aglutinativa global”, ora em análise no Congresso.

Regras de transição

Diferente da situação jurídica aplicável aqueles servidores que possuem direito adquirido à aposentadoria, objeto dos comentários acima, aqueles que já estavam vinculados respectivos regimes previdenciários na data da promulgação da reforma previdenciária, caso aprovada, mas que não hajam implementado as condições para a aposentação até a data da sua promulgação, serão submetidos às chamadas “regras de transição”, deixando de valer, em relação a eles, as regras previdenciárias até então vigentes.

Estas “regras de transição”, portanto, visam apenas tornar as modificações constitucionais, para este grupo, um pouco menos graves e onerosas do que serão elas sentidas por aqueles que ingressarem no serviço público após a reforma.

No caso específico dos trabalhadores da saúde, estas regras serão as seguintes, conforme sejam eles “celetistas” ou “estatutários”:

1. Requisitos para aposentadoria – estatutários

O art. 2º, da Proposta de Emenda Constitucional em debate, define que os servidores estatutários que hajam ingressado no serviço público até a data da promulgação desta Emenda passarão a ter que cumprir os seguintes requisitos para a aposentadoria:

a) ter 60 anos de idade (homem), ou 55 anos (mulher), sendo que em janeiro de 2020 estas idades mínimas serão acrescidas em 1 (um) ano, para ambos os sexos, sendo acrescido mais 1 (um) ano, a partir dali, a cada 2 (dois) anos, até chegarmos a 65 anos (homens) e 62 anos (mulheres); A tabela abaixo demonstra como ficará esta evolução da idade mínima:

Ano

Homens

Mulheres

Aprovação da Emenda

60

55

1.1.2020

61

56

1.1.2022

62

57

1.1.2024

63

58

1.1.2026

64

59

1.1.2028

65

60

1.1.2030

-

61

1.1.2032

-

62

b) ter 35 anos de contribuição (homens) ou 30 anos (mulheres);

c) ter 20 anos de efetivo serviço público;

d) ter 5 anos no cargo em que se dará a aposentadoria;

e) pagar um “pedágio” de 30% (trinta por cento) do tempo de contribuição que faltar, na data da promulgação da Emenda, para completar o mínimo previsto na letra “b” anterior. Ou seja, se um servidor do sexo masculino tiver 31 anos de contribuição na data da promulgação da Emenda, estará faltando 4 anos de contribuição para o mínimo de 35, ou seja, faltando 1.460 (um mil, quatrocentos e sessenta) dias, de modo que o seu pedágio, neste caso, será de 438 (quatrocentos e trinta e oito) dias.

Não há, nas “regras de transição” aplicáveis aos servidores estatutários, nenhuma menção ao trabalho exercido sob condições nocivas à saúde, direito que permanece pendente de regulamentação.

Se, entretanto, o servidor(a) houver ingressado no serviço público antes de 16.12.1998 (data da promulgação da EC nº 20, de 1998), há uma “regra de transição” um pouco mais aliviada, que lhe faculta optar pela redução das idades mínimas de que trata a letra “a” anterior, na proporção de 1 (um) dia de idade para cada 1 (um) dia de contribuição que exceder de 35 anos (homem), ou 30 anos (mulher), devendo, mantidas as demais exigências de que tratam as “c”, ‘d” e “e” anteriores.

2. Forma de cálculo da aposentadoria - estatutários

Além disso, a Proposta de Emenda Constitucional em análise define que as aposentadorias concedidas segundo os requisitos acima serão calculadas da seguinte forma:

a) corresponderão à totalidade da ultima remuneração em atividade, se o servidor houver ingressado no serviço público até 31.12.2003, e opte por se aposentar com idade mínima de 65 anos (homem) ou 62 anos (mulher);

b) se este mesmo servidor quiser se aposentar antes destas idades mínimas, conforme prevê a letra “a” do item 1, acima, seus proventos corresponderão a 100% (cem por cento) da média das remunerações que serviram de base para as contribuições por ele pagas aos regimes previdenciários a que houver se vinculado ao longo da sua vida laboral;

c) se este mesmo servidor não conseguir atingir as condições previstas nas letras “a” ou “b” acima, poderá se aposentar comprovando o mínimo de 25 (vinte e cinco) anos de contribuição, mas neste caso seus proventos corresponderão a 70% da média das remunerações que serviram de base para as contribuições por ele pagas aos regimes previdenciários a que houver se vinculado ao longo da sua vida laboral, acrescida de 1,5% (um vírgula cinco por cento) para cada grupo de 12 (doze) contribuições realizadas entre o 26º e o 30º ano de contribuição; 2% (dois por cento) para cada grupo de 12 (doze) contribuições realizadas entre o 31º e o 35º ano de contribuição; e de 2,5% (dois virgula cinco por cento) para cada grupo de 12 (doze) contribuições realizadas entre o 36º e o 40º ano de contribuição. Desta forma, apenas quando comprovar o mínimo de 40 anos de contribuição este servidor alcançará proventos correspondentes a 100% da média das remunerações percebidas ao longo do período contributivo.

3. Forma de revisão dos proventos - estatutário

Por fim, a PEC em análise prevê os seguintes critérios para a revisão dos proventos, após a sua concessão:

a) Se a aposentadoria houver ocorrido com o cumprimento da idade mínima de 65 anos (homem), ou 62 anos (mulher), será mantido o direito à paridade, de modo que os proventos serão revistos na mesma data e condições fixados para a revisão das remunerações pagas aos servidores em atividade, sendo também estendidas aos aposentados todas e quaisquer vantagens posteriormente concedidas aos ativos;

b) Se, entretanto, a aposentadoria houver sido concedida segundo os demais requisitos previstos no item 1 anterior, os proventos dela decorrentes serão revistos nas mesmas condições aplicadas aos benefícios mantidos pelo Regime Geral de Previdência Social, sem direito à paridade com os servidores em atividade.

Em resumo, enquanto pelas “regras de transição” previstas no art. 3º, da Emenda Constitucional nº 47, de 2005 (hoje em vigor), a exigência de idade mínima é de 60 anos (homem), e 55 (mulher), sendo reduzida em 1 (um) ano para cada ano a mais que 35 de contribuição (para os homens), ou 30 de contribuição (mulheres), sendo assegurados os direitos à integralidade e à paridade, se aprovada a reforma proposta pelo Governo estes direitos somente serão alcançados aos 65 anos (homens), ou aos 62 anos (mulheres), o que implica em pelo menos 5 anos a mais de trabalho, para os homens, e em 7 anos a mais, para as mulheres.

4. Requisitos para aposentadoria – celetistas

O art. 9º, da Proposta de Emenda Constitucional em debate, traz as “regras de transição” aplicáveis aos trabalhadores dos setores público ou privados, regidos pela CLT, que hajam se vinculado ao Regime Geral de Previdência Social até a data da promulgação desta Emenda, fixando os seguintes requisitos para a aposentadoria:

a) ter 55 anos de idade (homem), ou 53 anos (mulher), sendo que em janeiro de 2020 estas idades mínimas serão acrescidas em 1 (um) ano, para ambos os sexos, sendo acrescido mais 1 (um) ano, a partir dali, a cada 2 (dois) anos, até chegarmos a 65 anos (homens) e 62 anos (mulheres); A tabela abaixo demonstra como ficará esta evolução da idade mínima:

Ano

Homens

Mulheres

Aprovação da Emenda

55

53

1.1.2020

56

54

1.1.2022

57

55

1.1.2024

58

56

1.1.2026

59

57

1.1.2028

60

58

1.1.2030

61

59

1.1.2032

62

60

1.1.2034

63

61

1.1.2036

64

62

1.1.2038

65

-

b) ter 35 anos de contribuição (homens) ou 30 anos (mulheres);

c) pagar um “pedágio” de 30% (trinta por cento) do tempo de contribuição que faltar, na data da promulgação da Emenda, para completar o mínimo previsto na letra “b” anterior. Ou seja, se uma trabalhadora “celetista” do sexo feminino tiver 29 anos de contribuição na data da promulgação da Emenda, estará faltando 1 ano de contribuição para o mínimo de 3, ou seja, faltando 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias, de modo que o seu pedágio, neste caso, será de 109 (cento e nove) dias.

5. Forma de cálculo da aposentadoria - celetistas

Além disso, a Proposta de Emenda Constitucional em análise define que as aposentadorias concedidas segundo os requisitos acima, quando atinentes a trabalhadores que exercem atividades especiais que prejudiquem a saúde - e desde que comprovado o mínimo de 15 anos de contribuição -, corresponderá a 60% da média dos salários-de-contribuição, acrescida de 1% (um por cento) para cada grupo de 12 (doze) contribuições vertidas entre 16º e o 25º ano de contribuição; de 1,5% (um vírgula cinco por cento) para cada grupo de 12 (doze) contribuições realizadas entre o 26º e o 30º ano de contribuição; de 2% (dois por cento), para cada grupo de 12 (doze) contribuições realizadas entre o 31º e o 35º ano de contribuição; e de 2,5% (dois vírgula cinco por cento) para cada grupo de 12 (doze) contribuições realizadas a partir do 36º ano de contribuição, até o limite de 100% (cem por cento).

Desta forma, apenas quando comprovar a realização de 40 anos de contribuição este trabalhador alcançara 100% (cem por cento) da média dos seus salários-de- contribuição.

6. Forma de revisão dos proventos - celetistas

Por fim, a PEC em análise prevê que os proventos de aposentadoria, devidos aos trabalhadores “celetistas” vinculados ao RGPS, serão reajustados de modo a preservar, em caráter permanente, o seu valor real, conforme critérios definidos em lei.

Aqui, entretanto, cumpre lembrar que ao final de 2016 o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 95, que congela as despesas públicas por 20 (vinte) anos, o que implica dizer que neste período será inviável manter a atual política de reajuste anual dos benefícios pelo INPC.

7. Aposentadoria especial para “estatutários” e “celetistas”

É sabido que os trabalhadores da área da saúde - sejam eles “estatutários” ou “celetistas” -, comumente atuam sujeitos à ação de agentes nocivos à saúde, razão pela qual a Constituição Federal determina que recebam uma proteção previdenciária especial, conhecida como “aposentadoria especial”, que se dá por 2 (duas) diferentes formas:

a) Pela aposentadoria especial lato sensu, quando o trabalhador comprovar (no caso da área da saúde) o mínimo de 25 (vinte e cinco) anos de exposição ininterrupta à condições que prejudiquem a saúde ou a integridade física (art. 57, caput, da Lei nº 8.213/1991); e,

b) Pela contagem especial de tempo de serviço, caso o trabalhador não complete o mínimo de 25 (vinte e cinco) anos mencionados na letra “a” anterior, ou caso a exposição às condições que prejudiquem a saúde ou a integridade física não seja ininterrupta, havendo intervalos de prestação laboral comum (art. 57, § 5º, da Lei nº 8.213/1991), caso em que os períodos de exposição serão contados com acréscimo de 40% (quarenta por cento), para

os homens, e de 20% (vinte por cento), para as mulheres, sendo posteriormente somados ao tempo de serviço comum, com vistas à uma aposentadoria voluntária.

Para os servidores “estatutários”, entretanto, apesar da Constituição lhes deferir a mesma proteção, a realidade é que até hoje não foram publicadas normas legais que regulamentassem este direito, o que levou ao ajuizamento de diversos Mandados de Injunção junto ao Supremo Tribunal Federal, que culminaram com a publicação da Súmula Vinculante nº 33, a dizer que enquanto estas normas não vierem ao mundo jurídico o direito em tela deve ser exercido na forma do art. 57, da citada Lei nº 8.213, de 1991.

Ao fazê-lo, entretanto, apenas assegurou o direito em relação aos servidores públicos estatutários que comprovem pelo menos 25 (vinte e cinco) anos de exposição ininterrupta à condições que prejudiquem a saúde ou a integridade física (conforme art. 57, caput, da Lei nº 8.213/1991), nada dispondo a referida Súmula sobre a contagem especial de tempo de serviço, prevista no mesmo dispositivo legal, mas em seu § 5º.

Conquanto a “Emenda aglutinativa global” não altere substancialmente o direito em questão, também não avança no sentido de resolver a absurda ausência de regulamentação, que já perdura há mais de 29 (vinte e nove) anos, o que permite afirmar que seguiremos tendo um direito cujo exercício continuará sendo obstaculizado pela deliberada omissão dos Poderes Executivo e Legislativo em regulamentá-lo.

Devo concluir, por fim, conclamando todos os trabalhadores em saúde, seja em estabelecimentos públicos ou privados, a permanecerem mobilizados contra as propostas de Reforma da Previdência, pois estou convicto de que esta mobilização impedirá que sua aprovação ocorra este ano ou no ano vindouro.

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